O som com que o nosso Alva marulha no silêncio das noites marca bem as estações do ano.
Forte e possante no Inverno, quando as cheias fazem transbordar as águas arrastando ramos nas suas vagas. Um quase silvo contínuo no Verão, com algumas superfícies do leito paradas na míngua de correntes e caudais de outrora.
Essa paisagem sonora é a memória que mais frequentemente ouço referida com saudade:
“sinto falta daquele som sussurrante do caneiro que me acalma durante a noite…!” ou “gostava de poder regressar e viver aqui, ouvir o rio ao longe, antes de adormecer”, comentam.
Eu concordo. É uma inconfundível ligação de raízes profundas, umbilicais para quem nasceu e cresceu a ouvi-lo ao longo da infância e adolescência, mesmo que as movidas no tempo nos tenham depois condicionado a afastamentos. Por vezes, quem dele nunca se afastou, entranhou-o como algo garantido, e não escuta essa presença nem a falta que não sente.
No último ano, entre Setembro de 2020 e Novembro de 2021, tive o privilégio de o observar e ouvir diariamente ao longo das várias estações. Outono, Inverno, Primavera e Verão. Já não o fazia há muito e nunca o tinha feito com tamanha persistência, observância e cuidado. Foi com enorme contentamento que o registei como habitat de aves que não me recordo de ver noutros tempos e lhe conferem uma autenticidade e uma realeza tão digna de si.
Observei uma afinidade electiva sem igual, num par formado por uma garça e um pato, que o sobrevoam a horas certas em determinados períodos do ano. Goethe descreveu bem essas afinidades entre humanos mas como é delicioso configurá-las em relações inter-espécies! Também as há entre garças e garças, claro está, pares que surpreendi ocasionalmente noutras zonas do rio e que, invocando deuses e deusas, dou graças a que se mantenham com alguma tranquilidade e sustentabilidade. Falaram-me também que nele terá vivido há alguns anos uma família de lontras, entretanto desaparecida sem explicação plausível. E isto, alerta o reconhecimento de quão importante é educar e sensibilizar as populações para a preservação da biodiversidade ambiental, rica e enriquecedora!
Observar a senhora garça e o senhor pato — tal qual lhes chamo — a planarem sobre as águas gélidas e fartas do Alva no Inverno a poucos metros de mim, traz-me as lágrimas aos olhos, de comoção, face à imanência da Natureza e a nós, como parte dela!
Essa riqueza de tamanha beleza também, como não podia deixar de ser nos tempos que correm, aporta cuidados e preocupações, dúvidas e perguntas que assomam ao pensamento. Isso foi o que me aconteceu e vou relatar como sucedeu.
Em Março de 2021, repentinamente, testemunhei nas minhas observações diárias, que o caudal do rio diminuíra radicalmente de um dia para o outro. Essa mudança tão repentina e impactante deixou-me inquieta e levou-me a pesquisar possíveis causas para tão estranho fenómeno. Após meses de deambulações telefónicas e de correio digital, não tendo apurado conclusões satisfatórias, obtive, contudo, um conjunto de informações passíveis de interesse público comum e que partilho. Quem sabe, possam dar azo a novos passos de outrem, e sejam conducentes ao esclarecimento do que quase assume contornos de mistérios fluviais.
A montante do meu ponto de observação em Vila Cova de Alva, foi licenciada por um período de 35 anos, uma Hidroeléctrica, em 1997. A construção de um açude em betão, com cerca de 8 metros de altura e desenvolvimento de cortamento de cerca de 50 metros previsto para o efeito, permitiu a criação de uma albufeira na Ilha do Picoto, com peso muito favorável nas expectativas turístico-económicas avoenses, por prometer e resolver, a antiquíssima impossibilidade de mergulhar naquele local tão apetecível onde, desde que se tinha memória, a altura média das águas atingia os cerca de dez centímetros abaixo do joelho, de uma pessoa jovem ou adulta.
Um conjunto de contestações pensando as consequências de tudo o que lhe estivesse a jusante — em parte publicadas na impressa da época e em compilação acessível no site Ecos do Alva, secção Arquivo — não lograram sequer ao longo de todos estes anos, o cumprimento do período de funcionamento entre Outubro e Abril, fixado no Estudo de Impacto Ambiental.
Porém, a consulta da Licença, e a obtenção e divulgação desse documento durante este ano de 2021, conseguiu-o: suspendeu a retenção e libertação das águas em plena época balnear, o risco de arrastamento de pessoas em banhos, e a quase extinção da corrente fluvial com retenções sem permissão, nos meses de Maio a Setembro.
Ainda assim, mesmo com o respeito pela lei, a falta de caudal, é inquietante. Durante o Verão, na maior parte das zonas, o rio tem a aparência de um lago, a correnteza apenas é visível nos caneiros ou em parte deles, e essa estagnação propicia o crescimento de algas e limos talvez na origem de estranhas espumas e texturas aquíferas. Para quem conheceu o Alva e nele se banhou noutras épocas em diversos locais — onde aprendi a nadar aos cinco anos e desde os três chapinhava com os peixinhos — pode ser problemático este enquadramento mais recente.
O que efectivamente se passa com o nosso Alva, não se sabe. O Destacamento Territorial da GNR da Lousã, através do seu núcleo de Protecção Ambiental (NPA), assegurou fazer colheitas para análise laboratorial, de acordo com o plano de monitorização das águas balneares interiores 2021, remetido pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). A Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Centro, integrante da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), por seu turno, justificou a situação nos seguintes termos:
(…) o subsistema da Senhora do Desterro abastece, em mais de 90%, os municípios de Seia, Oliveira do Hospital e Gouveia e tem a sua origem de água no rio Alva. Em períodos prolongados de ausência de chuva, nas cabeceiras de linhas de água, que abastecem o rio Alva, como o que se regista atualmente, os caudais afluentes são praticamente todos conduzidos para o abastecimento de água às populações, indústrias e serviços daqueles três Municípios, todos eles, por sinal e felizmente, com uma população significativa e que aumenta neste período de verão, com o regresso dos emigrantes às origens. Refere-se que o abastecimento de água à população tem caráter prioritário, relativamente a qualquer outra utilização, ou mesmo questão ambiental, nos termos do disposto no artigo 64.º da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, prevendo-se, caso não chova nos próximos dias, o agravamento da situação durante o corrente mês de agosto e próximo mês de setembro.
Não havendo poesia na tecnicidade e sendo a minha ligação com o Alva poética, deixo a cada leitora e leitor, o esmiuçar de outros factores conhecidos. Sabemos que na Ponte das Três Entradas, ao Alva se junta o Alvôco, que em Avô, à confluência destes dois rios se juntam as águas da Ribeira de Pomares, e que dessas uniões resulta o Alva que chega a Vila Cova de Alva. Sabemos da abrangência de abastecimento da ETAR de Vila Cova de Alva à totalidade das localidades da União das Freguesias de Vila Cova do Alva e Anceriz, a parte das localidades de Coja e Barril do Alva, a Benfeita e à União das Freguesias de Cerdeira e Moura da Serra, assim como à localidade de Lourosa, no Concelho de Oliveira do Hospital.
Sabemos estar em falta a análise do impacto emitido pela construção de barragens, espaços turísticos e necessárias Etar´s, sobre os espaços fluviais e habitats naturais, e respectiva fauna e flora. E sabemos da importância de prestar atenção e cuidado a estes tesouros que são os nossos rios, os nossos espaços naturais, e as espécies que neles vivem.
No início do século XX, o rio Alva integrava a lista dos dez rios não poluídos da Europa. Ainda que a presença esse ranking provavelmente não regresse jamais, nele há muito a defender e preservar. Antes que seja tarde demais.
o Alva na Lua Azul de Agosto 2021
Crónica e desenho de Ilda Teresa de Castro* publicados na Comarca de Arganil de 13 de Janeiro 2022.
*investigadora Doutorada e Pós-doutorada pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, no domínio da sensibilização ambiental e ecológica.
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